Conto de Narciso de Andrade publicado na Mirante Especial Narciso
de Andrade de 1997 e republicado na Mirante Especial Narciso de Andrade de 2011.
NORA E OS VESTIDOS
Hoje vai chover. Nora
passou de vestido azul. Aquele azul que não é bem azul, azul como as nuvens,
nuvens rochosas, compactas, densas. E um vento tênue, tátil, fazendo figurações
lentas, ondulações de pregas que se desfazem, ânsia de libertação, vibração de
músculos em movimentos nervosos.
Um pouco fria a manhã.
Maçã esplêndida ilumina o carrinho do verdureiro.
A cauda do cavalo oscila vagarosa. Repicam palavras leves em saudações
matinais de bom-dia, como passou a noite, sorrisos frescos de faces femininas
que desabrocham em cores naturais. Pálidas. Um tanto murchas, mas ainda
serenas. Beijo em rosto sem pintura, as formas através de chitas, verduras úmidas,
pão em cima do muro e o braço que se eleva, seios, o peso da carne através do
portão.
Ninguém sabe que hoje
vai chover, ninguém conhece a estranha, a misteriosa relação existente entre os vestidos de Nora e os
acontecimentos.
Há quem entenda os
olhos de Nora e insista em afirmar que eles são verdes. Morena de olhos verdes
– eis todo um roteiro de mulher. Mas precisaria dizer mais: a constante
rebeldia dos cabelos, ora negros ora castanhos, crepusculares ou matutinos, em
tonalidades determinadas pela cor das horas. Como agora, quando ela passou e
eles revoavam quase louros. Cantantes. Metálicos. Luminosos. Seria necessário
também observá-la em atitude estática. Por exemplo, quando espera o bonde. E
que fazer senão reportar-se a pássaro no exato momento que antecede o voo? A
ave pousada, nunca inteiramente presa à terra, que nela comunica-se com espaços
e distâncias.
E mais a dizer? O
poder de equilíbrio e surpresa da matéria palpitando em inteira perfeição.
Dizer com isto que há calma de lago em certo trecho de seu corpo e noutros a
voragem de precipícios se insinua por uma curva inesperada ou o recorte de um
ângulo imprevisto.
Apelar para todo um
repositório de linhas e planos de esquiva geometria para descrever a ardente
geografia das formas que se oferecem, verdades supostas, sem entrega. Que no
fundo é o remanso de água parada forçando o contorno das margens. Mesmo assim,
de Nora surgiria apenas a camada que se liga a elementos visuais e sensitivos.
Aquilo que se expõe a olhos contentes com superfície, detalhe de uma veia no
braço, zonas de luz e sombras, jeito, maneiras, gestos.
Presença, fugas.
Seus movimentos determinados a temperatura ambiente, a magia das estações de
repente confundidas – e a primavera avançando os meridianos de inverno. O verão
na dependência de uma palavra ou preso ao rito majestoso de um sorriso.
E mais querendo
fixar seria repetir o mar que já tanto se repete. Nos seus ciclos normais de
píncaro e planície, tempos distintos e convergentes, cujos limites e fronteiras
constituem território inatingível . Repetir,
portanto, sem confirmar. Restando quase integra a dúvida. Desta surgindo a mulher de quem se ouve nas águas e nos ventos o nome repetido: Nora, Nora.
Desse espaço de dúvida (ou mistério) participam os seus vestidos. Por isso eu
sei que hoje vai chover. Nora passou de
vestido azul nublado. Os elementos em
confabulação preparam-se para gerar a chuva. Com a chuva virão relâmpagos,
estes trarão o medo. Janelas que batem,
portas rangendo. Fechadas todas as saídas. Casas voltadas para dentro,
sufocantes. Senhoras cruzam agulhas velozmente, tricô, bordados – meu Deus, a
chuva não passa, vai inundar o quintal, invadir o porão! – a agulha sobe e
desce , trança e destrança, fixa, prende, conduz, constrói. Unir o fio rompido, enfiar a linha no buraco
da agulha por onde é mais fácil passar um camelo. A chuva demanda reflexão.
Verbo esquivo, andar pouco, mínimo de movimentos com o corpo. O pensamento
suportando todo o peso específico da chuva. Introspecção.
Mais as crianças
saltarão de alegria, torso nu, pés no chão, pictóricas, soberbas. Pedaços vivos
em destaque na paisagem onde se relacionam em luminosidade e vibração com as
unidades vegetais.
Depois virá o tempo
bom. Dia sem chuva, noite com lua, diálogo de grilos. O canário vibrátil,
histriônico, canta e representa na gaiola. Mãos translúcidas rolando em abismos
de sons que se buscam e se repelem – escalas ao piano. Sonoridade assimilável
da música do cotidiano, alva substância das horas comuns. Os simples combinando
pescarias. Maresia, álcool, estrelas, mar alto, mistério, lagrimas em fugas nos
olhos dos rudes. Sempre voltam bêbados e puros.
Os inúmeros arranjos
domésticos dão a sintonia geral e o relógio liga os minutos, tecendo, tecendo.
Ritmo de continuação, do que veio para o que vai, sem sobressalto. Todos enfim
aceitando o dia porque o tempo é bom e a vida curta. Mas aí, então, Nora estará de branco.
Aquele vestido que a liberta da marcação do tempo e indefine o
conceito de idade. Poderíamos chamá-la
doce menina ou grave senhora. Aglutinar no instante em que ela passa
todos os séculos que antecederam esse indefinível momento. E proclamar que o
dia é belo porque Nora está de branco. Nem há qualquer outra razão para as
flores explodirem com tanto prazer de cores e perfumes. É Nora, é Nora de
branco quem propicia o evolar do pólen das rosas e estabelece o ciclo de
fertilidade que ilumina a face dos jardins.
Para o amor, ouvi dizer, Nora prefere o vermelho. E seus olhos ficam
turvos. E sempre ocorre alguma catástrofe nessas ocasiões. Pronunciamento de
grandes homens gerando o desentendimento. Naufrágios. O corpo do afogado dando
á praia sete dias depois do procurar-se no jornal. A mãe, quebradas todas as resistências,
precipitando-se no pântano pegajoso da loucura. Por outro lado, há quem afirme
coisa diversa. Que Nora se põe de verde para o amor, uma aura imponderável a
envolve e gotas orvalho brotam de seus membros. Paz. Serenidade.
Doçura. Amanhece. Asas roçam a superfície da água, a gaivota adeja, seu
corpo claro confina com o horizonte. O barco passa lentamente transportando
silêncio no bojo das velas. Volúpia. Langor. O tecido das espumas recobre a proa:
véu diáfano de virgem enlanguescida. O jovem mergulha em alto mar e volta com
uma estrela na mão, rilhando os dentes. Segredo de amar sem desfazer-se.
E tudo seria
verde. Verde campo, verde oceano, verde do vestido verde de Nora em tempo de
amor. A certeza integral, contudo, permanecendo. Seus vestidos é que dirigem,
no âmago, a mecânica dos acontecimentos. Deles parte a chispa de fogo da vida e
da morte.
É possível saber-se o que vai suceder
se ela estiver de amarelo, inclusive. E o amarelo é antes de tudo a fatigante
intenção. As ausências se preenchem em amarelo. Gato no tapete, ronronando. Tédio,
melancolia. Pergunta-se porque e o menino responde: está tudo tão amarelo. O
amarelo é isto – uma irritante resposta de menino, oca por dentro, resvaladiça
por fora. A gente escorrega e custa a refazer o equilíbrio. Estabelece-se o
hiato do absurdo.
Este mesmo
amarelo assim tão vago e enervante passa a palpitar-se, em função de um vestido
de Nora, anuncia o amadurecimento dos frutos.
Nora passou de
vestido azul: hoje vai chover. É preciso recolher a roupa posta a secar.
Munir-se de preocupação e não sair afoitamente só porque o sol existe e o dia é
lindo. Necessário se torna dilacerar a epiderme do cotidiano e atingir o cerne
da verdade. Nesta região respiramos livremente. Não há caminhos, nossos passos derivam
para todos os lados e não deixam sinal no solo. Outros virão depois para
inaugurar novos roteiros.
Até que um dia
Nora retire do armário aquele vestido preto e tudo termine sem explicação.