sábado, 28 de setembro de 2013

NORA E OS VESTIDOS - Conto de Narciso de Andrade

     
Conto de Narciso de Andrade publicado na Mirante Especial Narciso de Andrade de 1997 e republicado na Mirante Especial  Narciso de Andrade de 2011.


NORA E OS VESTIDOS


        Hoje vai chover. Nora passou de vestido azul. Aquele azul que não é bem azul, azul como as nuvens, nuvens rochosas, compactas, densas. E um vento tênue, tátil, fazendo figurações lentas, ondulações de pregas que se desfazem, ânsia de libertação, vibração de músculos em movimentos nervosos.
         Um pouco fria a manhã. Maçã esplêndida ilumina o carrinho do verdureiro.
A cauda do cavalo oscila vagarosa. Repicam palavras leves em saudações matinais de bom-dia, como passou a noite, sorrisos frescos de faces femininas que desabrocham em cores naturais. Pálidas. Um tanto murchas, mas ainda serenas. Beijo em rosto sem pintura, as formas através de chitas, verduras úmidas, pão em cima do muro e o braço que se eleva, seios, o peso da carne através do portão.
          Ninguém sabe que hoje vai chover, ninguém conhece a estranha, a misteriosa relação existente  entre os vestidos de Nora e os acontecimentos.
          Há quem entenda os olhos de Nora e insista em afirmar que eles são verdes. Morena de olhos verdes – eis todo um roteiro de mulher. Mas precisaria dizer mais: a constante rebeldia dos cabelos, ora negros ora castanhos, crepusculares ou matutinos, em tonalidades determinadas pela cor das horas. Como agora, quando ela passou e eles revoavam quase louros. Cantantes. Metálicos. Luminosos. Seria necessário também observá-la em atitude estática. Por exemplo, quando espera o bonde. E que fazer senão reportar-se a pássaro no exato momento que antecede o voo? A ave pousada, nunca inteiramente presa à terra, que nela comunica-se com espaços e distâncias.
          E mais a dizer? O poder de equilíbrio e surpresa da matéria palpitando em inteira perfeição. Dizer com isto que há calma de lago em certo trecho de seu corpo e noutros a voragem de precipícios se insinua por uma curva inesperada ou o recorte de um ângulo imprevisto.
         Apelar para todo um repositório de linhas e planos de esquiva geometria para descrever a ardente geografia das formas que se oferecem, verdades supostas, sem entrega. Que no fundo é o remanso de água parada forçando o contorno das margens. Mesmo assim, de Nora surgiria apenas a camada que se liga a elementos visuais e sensitivos. Aquilo que se expõe a olhos contentes com superfície, detalhe de uma veia no braço, zonas de luz e sombras, jeito, maneiras, gestos.
              Presença, fugas. Seus movimentos determinados a temperatura ambiente, a magia das estações de repente confundidas – e a primavera avançando os meridianos de inverno. O verão na dependência de uma palavra ou preso ao rito majestoso de um sorriso.
              E mais querendo fixar seria repetir o mar que já tanto se repete. Nos seus ciclos normais de píncaro e planície, tempos distintos e convergentes, cujos limites e fronteiras constituem  território inatingível . Repetir, portanto, sem confirmar. Restando quase integra a dúvida. Desta surgindo  a mulher de quem se ouve nas águas  e nos ventos o nome repetido: Nora, Nora. Desse espaço de dúvida (ou mistério) participam os seus vestidos. Por isso eu sei que hoje vai chover. Nora  passou de vestido azul nublado.  Os elementos em confabulação  preparam-se para  gerar a chuva. Com a chuva virão relâmpagos, estes trarão o medo. Janelas que  batem, portas rangendo. Fechadas todas as saídas. Casas voltadas para dentro, sufocantes. Senhoras cruzam agulhas velozmente, tricô, bordados – meu Deus, a chuva não passa, vai inundar o quintal, invadir o porão! – a agulha sobe e desce , trança e destrança, fixa, prende, conduz, constrói.  Unir o fio rompido, enfiar a linha no buraco da agulha por onde é mais fácil passar um camelo. A chuva demanda reflexão. Verbo esquivo, andar pouco, mínimo de movimentos com o corpo. O pensamento suportando todo o peso específico da chuva. Introspecção.
         Mais as crianças saltarão de alegria, torso nu, pés no chão, pictóricas, soberbas. Pedaços vivos em destaque na paisagem onde se relacionam em luminosidade e vibração com as unidades vegetais.
          Depois virá o tempo bom. Dia sem chuva, noite com lua, diálogo de grilos. O canário vibrátil, histriônico, canta e representa na gaiola. Mãos translúcidas rolando em abismos de sons que se buscam e se repelem – escalas ao piano. Sonoridade assimilável da música do cotidiano, alva substância das horas comuns. Os simples combinando pescarias. Maresia, álcool, estrelas, mar alto, mistério, lagrimas em fugas nos olhos dos rudes. Sempre voltam bêbados e puros.
        Os inúmeros arranjos domésticos dão a sintonia geral e o relógio liga os minutos, tecendo, tecendo. Ritmo de continuação, do que veio para o que vai, sem sobressalto. Todos enfim aceitando o dia porque o tempo é bom e a vida curta.  Mas aí, então, Nora estará de branco.
Aquele vestido que a liberta da marcação do tempo e indefine o conceito de idade. Poderíamos chamá-la  doce menina ou grave senhora. Aglutinar no instante em que ela passa todos os séculos que antecederam esse indefinível momento. E proclamar que o dia é belo porque Nora está de branco. Nem há qualquer outra razão para as flores explodirem com tanto prazer de cores e perfumes. É Nora, é Nora de branco quem propicia o evolar do pólen das rosas e estabelece o ciclo de fertilidade que ilumina a face dos jardins.
Para o amor, ouvi dizer, Nora prefere o vermelho. E seus olhos ficam turvos. E sempre ocorre alguma catástrofe nessas ocasiões. Pronunciamento de grandes homens gerando o desentendimento. Naufrágios. O corpo do afogado dando á praia sete dias depois do procurar-se no jornal. A mãe, quebradas todas as resistências, precipitando-se no pântano pegajoso da loucura. Por outro lado, há quem afirme coisa diversa. Que Nora se põe de verde para o amor, uma aura imponderável a envolve e gotas orvalho brotam de seus membros. Paz.  Serenidade.  Doçura. Amanhece. Asas roçam a superfície da água, a gaivota adeja, seu corpo claro confina com o horizonte. O barco passa lentamente transportando silêncio no bojo das velas. Volúpia. Langor. O tecido das espumas recobre a proa: véu diáfano de virgem enlanguescida. O jovem mergulha em alto mar e volta com uma estrela na mão, rilhando os dentes. Segredo de amar sem desfazer-se.
               E tudo seria verde. Verde campo, verde oceano, verde do vestido verde de Nora em tempo de amor. A certeza integral, contudo, permanecendo. Seus vestidos é que dirigem, no âmago, a mecânica dos acontecimentos. Deles parte a chispa de fogo da vida e da morte.
                É possível saber-se o que vai suceder se ela estiver de amarelo, inclusive. E o amarelo é antes de tudo a fatigante intenção. As ausências se preenchem em amarelo. Gato no tapete, ronronando. Tédio, melancolia. Pergunta-se porque e o menino responde: está tudo tão amarelo. O amarelo é isto – uma irritante resposta de menino, oca por dentro, resvaladiça por fora. A gente escorrega e custa a refazer o equilíbrio. Estabelece-se o hiato do absurdo.
                 Este mesmo amarelo assim tão vago e enervante passa a palpitar-se, em função de um vestido de Nora, anuncia o amadurecimento dos frutos.
                Nora passou de vestido azul: hoje vai chover. É preciso recolher a roupa posta a secar. Munir-se de preocupação e não sair afoitamente só porque o sol existe e o dia é lindo. Necessário se torna dilacerar a epiderme do cotidiano e atingir o cerne da verdade. Nesta região respiramos livremente. Não há caminhos, nossos passos derivam para todos os lados e não deixam sinal no solo. Outros virão depois para inaugurar novos roteiros.

               Até que um dia Nora retire do armário aquele vestido preto e tudo termine sem explicação.

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

A Mirante (Revista Literária Santista Trimestral) teve muitos aniversários e muitos poetas, escritores e desenhistas, consagrados ou não, publicados em suas páginas. Em outubro de 2012 a revista chegou ao n° 79 completando 30 anos, recebendo uma edição especial, com retrospectiva histórica, com lançamento, em de novembro de 2012, na Cafeteria Ao Café , em Santos, e  no mês seguinte,  o evento  foi na Bel Cafeteria em São Vicente.

A Mirante sempre promoveu lançamentos em cafeterias, bibliotecas, livrarias, bares, pizzarias, ou seja, procurando divulgar  a  poesia e compartilharmos uma noite agradável.

Em abril de 2013 foi postada a edição da Mirante 30 anos completa neste Blog permitindo assim que se conheça a revista. E em setembro já nos aguarda o lançamento da Mirante número 82, onde um dos destaques será uma entrevista inédita  com o poeta Narciso de Andrade, além de outras atrações literárias. Aguardem.

_______________________________________________________________  OS EDITORES

Mirante Especial Narciso de Andrade


Capa da Mirante n° 40, onde completou 20 anos e mais Encarte Especial do Picaré (outubro de 2002)